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terça-feira, 1 de setembro de 2015

31. A Portugal (Jorge de Sena)

A Portugal


Esta é a ditosa pátria minha amada. Não.
Nem é ditosa, porque o não merece.
Nem minha amada, porque é só madrasta.
Nem pátria minha, porque eu não mereço
a pouca sorte de ter nascido nela.

Nada me prende ou liga a uma baixeza tanta
quanto esse arroto de passadas glórias.
Amigos meus mais caros tenho nela,
saudosamente nela, mas amigos são
por serem meus amigos, e mais nada.

Torpe dejecto de romano império;
babugem de invasões; salsugem porca
de esgoto atlântico; irrisória face
de lama, de cobiça, e de vileza,
de mesquinhez, de fátua ignorância;
terra de escravos, cu pró ar ouvindo
ranger no nevoeiro a nau do Encoberto;
terra de funcionários e de prostitutas,
devotos todos do milagre, castos
nas horas vagas de doença oculta;
terra de heróis a peso de ouro e sangue,
e santos com balcão de secos e molhados
no fundo da virtude; terra triste
à luz do sol caiada, arrebicada, pulha,
cheia de afáveis para os estrangeiros
que deixam moedas e transportam pulgas,
oh pulgas lusitanas, pela Europa;
terra de monumentos em que o povo
assina a m erda o seu anonimato;
terra - museu em que se vive ainda,
com porcos pela rua, em casas celtiberas;
terra de poetas tão sentimentais
que o cheiro de um sovaco os põe em transe;
terra de pedras esburgadas, secas
como esses sentimentos de oito séculos
de roubos e patrões, barões ou condes;
ó terra de ninguém, ninguém, ninguém:

eu te pertenço. És cabra, és badalhoca,
és mais que cachorra pelo cio,
és peste e fome e guerra e dor de coração.
Eu te pertenço: mas ser's minha, não.
         
Jorge de Sena, 1961

“Tempo de Peregrinatio ad Loca Infecta (1959-1969)” in 40 Anos de Servidão, Lisboa: Edições 70, 1989, pp. 85-86.
Apesar de a obra ter sido publicada postumamente, em 1979, o poema “A Portugal” tem como data da sua elaboração o ano de 1961.
               

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

19. Quem a tem... (Jorge de Sena)

Quem a tem...


Não hei-de morrer sem saber
qual a cor da liberdade.

Eu não posso senão ser
desta terra em que nasci.
Embora ao mundo pertença
e sempre a verdade vença,
qual será ser livre aqui,
não hei-de morrer sem saber.

Trocaram tudo em maldade,
é quase um crime viver.
Mas, embora escondam tudo

me queiram cego e mudo,
não hei-de morrer sem saber
qual a cor da liberdade.

Jorge de Sena (1956)

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

9. Rendimento



Estava sentado no degrau da porta.
encostado à ombreira,
numa rua de ligação, sem montras,
onde só passam carros e as pessoas a encurtar caminho.



A face pálida, boca entreaberta,
barba por fazer e o cabelo em repas desoladas.

Dificilmente respirava, nada seguia com os olhos,
era muito abertos, ora piscando muito.

No regaço, e protegido pelos joelhos agudos,
tinha um boné no qual
esmolavam os transeuntes.

Da lapela, preso por um alfinete,
pendia amarrotado e sujo um boletim
da Assistência Nacional aos Tuberculosos.

Era o cartão de visita, o bilhete
de identidade, a certidão, a carta
de curso, a apólice de seguro,
o título do Estado.


E no boné, como se vê, caía o juro.

Jorge de Sena, 25 de junho de 1946.