O PORTUGAL FUTURO
O portugal futuro é um país
aonde o puro pássaro é possível
e sobre o leito negro do asfalto da estrada
as profundas crianças desenharão a giz
esse peixe da infância que vem na enxurrada
e me parece que se chama sável
Mas desenhem elas o que desenharem
é essa a forma do meu país
e chamem elas o que lhe chamarem
portugal será e lá serei feliz
Poderá ser pequeno como este
ter a oeste o mar e a espanha a leste
tudo nele será novo desde os ramos à raiz
À sombra dos plátanos as crianças dançarão
e na avenida que houver à beira-mar
pode o tempo mudar será verão
Gostaria de ouvir as horas do relógio da matriz
mas isso era o passado e podia ser duro
edificar sobre ele o portugal futuro
Ruy Belo (1933-1978), Homem de Palavra(s), 1970
sexta-feira, 13 de novembro de 2015
80. Qualquer dia (José Afonso e Fernando Miguel Bernardes)
QUALQUER DIA
No inverno bato o queixo
sem mantas na manhã fria
No inverno bato o queixo
Qualquer dia
Qualquer dia
No Inverno aperto o cinto
Enquanto o vento assobia.
No inverno aperto o cinto
Qualquer dia
Qualquer dia
No Inverno vou pôr lume
Lenha verde não ardia.
No inverno vou pôr lume
Qualquer dia
Qualquer dia
No Inverno penso muito
Oh que coisas eu já via
No inverno penso muito
Qualquer dia
Qualquer dia
No Inverno ganhei ódio
E juro que o não queria
No inverno ganhei ódio
Qualquer dia
Qualquer dia.
Música: José Afonso
Letra: F. Miguel Bernardes
Intérprete: Zeca Afonso
In: Contos Velhos Rumos Novos, 1969
terça-feira, 20 de outubro de 2015
NOUTROS LUGARES
Não é que ser possível ser feliz acabe,
quando se aprende a sê-lo com bem pouco.
Ou que não mais saibamos repetir o gesto
que mais prazer nos dá, ou que daria
a outrem um prazer irresistível. Não:
o tempo nos afina e nos apura:
faríamos o gesto com infinda ciência.
Não é que passem as pessoas, quando
o nosso pouco é feito da passagem delas.
Nem é também que ao jovem seja dado
o que a mais velhos se recusa. Não.
É que os lugares acabam. Ou ainda antes
de serem destruídos, as pessoas somem,
e não mais voltam onde parecia
que elas ou outras voltariam sempre
por toda a eternidade. Mas não voltam,
desviadas por razões ou por razão nenhuma.
É que as maneiras, modos, circunstâncias
mudam. Desertas ficam praias que brilhavam
não de água ou sol mas de solta juventude.
As ruas rasgam casas onde leitos
já frios e lavados não rangiam mais.
E portas encostadas só se abrem sobre
a treva que nenhuma sombra aquece.
O modo como tínhamos ou víamos,
em que com tempo o gesto sempre o mesmo
faríamos com ciência refinada e sábia
o mesmo gesto que seria útil,
se o modo e a circunstância persistissem),
tornou-se sem sentido e sem lugar.
Os outros passam, tocam-se, separam-se,
exatamente como dantes. Mas
aonde e como? Aonde e como? Quando?
Em que praias, que ruas, casas, e quais leitos,
a que horas do dia ou da noite, não sei.
Apenas sei que as circunstâncias muda
m
e que os lugares acabam. E que a gente
não volta ou não repete, e sem razão, o que
só por acaso era a razão dos outros.
E do que vi ou tive uma saudade sinto,
feita de raiva e do vazio gélido,
não é saudade, não. Mas muito apenas
o horror de não saber como se sabe agora
o mesmo que aprendi. E a solidão
de tudo ser igual doutra maneira.
E o medo de que a vida seja isto:
um hábito quebrado que se não reata,
senão noutros lugares que não conheço.
Jorge de Sena (1967)
segunda-feira, 19 de outubro de 2015
Zeca Afonso - Viva o Poder Popular
Não há velório nem morto
Nem círios para queimar
Quando isto der prò torto
Não te ponhas a cavar
Quando isto der prò torto
Lembra-te cá do colega
Não tenhas medo da morte
Que daqui ninguém arreda
Se a CAP é filha do facho
Se o facho é filho da mãe
O MAP é filho do Portas
Do Barreto e mais alguém
Às aranhas anda o rico
Transformado em democrata
Às aranhas anda o pobre
Sem saber quem o maltrata
Às aranhas te vi hoje
Soldado, na casamata
Militares colonialistas
Entram já na tua casa
Vinho velho vinho novo
Tudo a terra pode dar
Dêm as pipas ao povo
Só ele as sabe guardar
Anda cá abaixo, ó Aleixo
Vem partir o fundo ao tacho
Quanto mais lhe vejo o fundo
Mais pluralista o acho
Os barões da vida boa
Vão de manobra em manobra
Visitar as capelinhas
Vender pomada da cobra
A palavra socialismo
Como está hoje mudada
De Colarinhos a Texas
Sempre muito aperaltada
Sempre muito aperaltada
Fazendo o V da vitória
Para enganar o proleta
Hás-de vir comigo a glória
O Willy Brandt é macaco
O Giscard é macacão
O capital parte o coco
Só não ri a emigração
De caciques e de bufos
Mandei fazer um sacrário
Para pôr no travesseiro
Dum cura reaccionário
Não sei quem seja de acordo
Como vamos terminar
Vinho velho vinho novo
Viva o Poder Popular
José Afonso, 1975
domingo, 18 de outubro de 2015
79. Tejo que levas as águas (Manuel da Fonseca)
Poema de Manuel da Fonseca, interpretado por Adriano Correia de Oliveira
Tejo que levas as águas
Tejo que levas as águas
Correndo de par em par
Lava a cidade de mágoas
Leva as mágoas para o mar
Lava-a de crimes espantos
De roubos fomes terror
Lava a cidade de quantos
Do ódio fingem amor
Lava bancos e empresas
Dos comedores de dinheiro
Que dos salários de tristeza
Arrecadam lucro inteiro
Lava palácios vivendas
Casebres bairros da lata
Leva negócios e rendas
Que a uns farta e a outros mata
Leva nas águas as grades
De aço e silêncio forjadas
Deixa soltar-se a verdade
Das bocas amordaçadas
Lava avenidas de vícios
Vielas de amores venais
Lava albergues e hospícios
Cadeias e hospitais
Afoga empenhos favores
Vãs glórias, ocas palmas
Leva o poder dos senhores
Que compram corpos e almas
Das camas de amor comprado
Desata abraços de lodo
Rostos corpos destroçados
Lava-os com sal e iodo
Tejo que levas as águas
Correndo de par em par
Lava a cidade de mágoas
Leva as mágoas para o mar.
Manuel da Fonseca, Poemas para Adriano, 1972
sábado, 17 de outubro de 2015
78. O meu amor mariñeiro (Poema de Manuel Alegre, interpretado por Fuxan Os Ventos)
"O meu amor mariñeiro" é uma canção composta pelo grupo galego "Fuxan os Ventos", com letra em galego de Lois Álvarez Pousa, adaptada do poema "A Trova do Amor Lusíada", original em português do poeta Manuel Alegre, com música de Xosé L. Rivas Cruz.
O meu amor mariñeiro
Meu amor é mariñeiro
e vive no alto mar;
son os seus brazos o vento
ninguén llos pode amarrar.
Meu amor é mariñeiro
e cando me ven falar
pon un carabel nos beizos
no corazón un cantar.
EU SON LIBRE COMO AS AVES
E PASO A VIDA A CANTAR;
CORAZÓN QUE NACE LIBRE
NON SE PODE ENCADEAR.
Traio un navío nas veas
eu nacín pra mariñar;
quen tente porme cadeas
háme primeiro matar!
Vale máis ser libre un día
no confín do bravo mar,
que vivir toda a vida,
preso, escravo e a calar!
El vive alá lonxe, lonxe,
onde brúa o bravo mar,
e coa súa forza inmorrente
onda nós ha de voltar!
EU SON LIBRE COMO AS AVES
E PASO A VIDA A CANTAR;
CORAZÓN QUE NACE LIBRE
NON SE PODE ENCADEAR.
Nun momento, de repente,
eu sei que un día virá,
como se o mar e o vento,
en nós abrise a cantar.
HEI PASAR POLO LUGARES
COMO O VENTO NO AREAL
ABRIR TÓDALAS VENTANAS
COA ESCRAVITUDE ACABAR!
Polas rúas das ciudades
hei de pasar a cantar,
traguendo na mau direita
a espada da libertá.
Como se un navío entrase
de supeto, na ciudá,
traguendo a voar no mástil
bandeiras de libertá!
HEI PASAR POLO LUGARES
COMO O VENTO NO AREAL
ABRIR TÓDALAS VENTANAS
COA ESCRAVITUDE ACABAR!
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TROVA DO AMOR LUSÍADA
Meu amor é marinheiro
quando suas mãos me despem
é como se o vento abrisse
as janelas do meu corpo.
Quando seus dedos me tocam
é como se no meu sangue
nadassem todos os peixes
que nadam no mar salgado.
Meu amor é marinheiro.
Quando chega à minha beira
acende um cravo na boca
e canta desta maneira:
- Eu sou livre como as aves
e passo a vida a cantar
coração que nasceu livre
não se pode acorrentar.
Trago um navio nas veias
eu nasci para marinheiro
quem quiser pôr-me cadeias
há-de matar-me primeiro.
Meu amor é marinheiro
e mora no alto mar
seus braços são como o vento
ninguém os pode amarrar.
Quando chega à minha beira
todo o meu sangue é um rio
onde o meu amor aporta
seu coração - um navio.
Meu amor disse que eu tinha
uns olhos como gaivotas
e uma boca onde começa
o mar de todas as rotas.
Meu amor disse que eu tinha
na boca um gosto a saudade
e uns cabelos onde nascem
os ventos e a liberdade.
(…)
Manuel Alegre
Interpretação de Adriano Correia de Oliveira - aqui
Interpretação de Anabela - aqui
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O meu amor é marinheiro
Meu amor é marinheiro
Meu amor é marinheiro
E mora no alto mar
Seus braços são como o vento
Ninguém os pode amarrar.
Quando chega à minha beira
Todo o meu sangue é um rio
Onde o meu amor aporta
Meu coração - um navio.
Meu amor disse que eu tinha
Na boca um gosto a saudade
E uns cabelos onde nascem
Os ventos e a liberdade.
Meu amor é marinheiro
Quando chega à minha beira
Acende um cravo na boca
E canta desta maneira.
Eu vivo lá longe, longe
Onde moram os navios
Mas um dia hei-de voltar
Às águas dos nossos rios.
Hei-de passar nas cidades
Como o vento nas areias
E abrir todas as janelas
E abrir todas as cadeias.
Assim falou meu amor
Assim falou-me ele um dia
Desde então eu vivo à espera
Que volte como dizia.
Manuel Alegre
Interpretado por Amália Rodrigues, com música de Alain Oulman - aqui
Interpretado por Maria Bethânia - aqui
77. Como Ulisses te busco e desespero (Manuel Alegre)
COMO ULISSES TE BUSCO E DESESPERO
Como Ulisses te busco e desespero
como Ulisses confio e desconfio
e como para o mar se vai um rio
para ti vou. Só não me canta Homero.
Mas como Ulisses passo mil perigos
escuto a sereia e a custo me sustenho
e embora tenha tudo nada tenho
que em te não vendo tudo são castigos.
Só não me canta Homero. Mas como Ulisses
vou com meu canto como um barco
ouvindo o teu chamar ‑ Pátria Sereia
Penélope que não te rendes – tu
que esperas a tecer um tempo ideia
que de novo teu povo empunhe o arco
como Ulisses por ti nesta odisseia.
Manuel Alegre, Praça da Canção/O Canto e As Armas
Como Ulisses te busco e desespero
como Ulisses confio e desconfio
e como para o mar se vai um rio
para ti vou. Só não me canta Homero.
Mas como Ulisses passo mil perigos
escuto a sereia e a custo me sustenho
e embora tenha tudo nada tenho
que em te não vendo tudo são castigos.
Só não me canta Homero. Mas como Ulisses
vou com meu canto como um barco
ouvindo o teu chamar ‑ Pátria Sereia
Penélope que não te rendes – tu
que esperas a tecer um tempo ideia
que de novo teu povo empunhe o arco
como Ulisses por ti nesta odisseia.
Manuel Alegre, Praça da Canção/O Canto e As Armas
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